Por décadas, a mesma pergunta básica assombra o Oriente Médio: qual é o maior obstáculo à consolidação da estabilidade e da soberania? Para mim, a resposta é clara. A "estatização das milícias": a transformação de grupos armados não estatais e movimentos revolucionários de entidades temporárias, nascidas de circunstâncias sombrias, em quase instituições inseridas no Estado, minando sua autoridade e mantendo suas ideologias, simbolismos e lealdades transnacionais. Quando o Estado tolera um poder paralelo, a legitimidade não é sustentada pela lei, mas pelas armas.
Esse fenômeno não se limita a um único país. No Líbano, o Hezbollah tornou-se um Estado dentro do Estado, monopolizando as decisões de guerra e paz. Na Palestina, o controle de Gaza pelo Hamas deu origem a autoridades paralelas que consolidaram a divisão e congelaram o progresso em direção a um Estado unificado.
No Iêmen, os Houthis estabeleceram autoridades de fato disfarçadas de retórica sectária e religiosa, mergulhando o país em um conflito perpétuo. Desde o colapso do regime obscuro de Assad, houve tentativas de reconstruir um Estado na Síria, mas o maior desafio continua sendo o facciosismo e uma mentalidade de dominação que rejeita a inclusão.
É o Iraque, no entanto, que agora apresenta o quadro mais claro desse dilema por meio das Forças de Mobilização Popular (PMF). As PMF surgiram em 2014 como auxiliares do exército que se juntou à luta contra o terrorismo. No entanto, não se dissolveram após o fim dessa missão. Em vez disso, continuaram a se expandir, recrutando um total de 200.000 combatentes e obtendo um orçamento anual superior a US$ 3 bilhões. Tornou-se um guarda-chuva para dezenas de facções, algumas das quais são organizações terroristas designadas por Washington. O passo mais recente (e mais perigoso) nesse caminho foi legislativo. Dois projetos de lei foram apresentados ao parlamento: o primeiro transformaria as PMF em uma instituição permanente com um orçamento anual independente, seguindo a estrutura de um ministério; A segunda concederia aos seus combatentes toda a gama de serviços e benefícios de aposentadoria que acompanham o emprego no setor público, estabeleceria uma academia militar dedicada às Forças de Segurança Popular (PMF) e promoveria seu comandante, Faleh al-Fayyad, a ministro e membro titular do Conselho de Segurança Nacional.
Por trás dessa trajetória, está uma máquina bem lubrificada que supervisionou uma campanha de intimidação lançada por "facções da resistência" apoiadas pelo Irã. Em 23 de julho, Abu Ali al-Askari, filiado ao Kataib Hezbollah, emitiu uma declaração vinculando o destino das forças americanas ao status das PMF, ameaçando que a não retirada total "seria recebida com um tipo diferente de resposta".
Dias depois, um membro do bloco Al-Sadiqoun (Asaib Ahl al-Haq) acusou parlamentares sunitas e curdos de obstruírem a lei devido à pressão americana, além de insinuar que a presença das forças americanas no Iraque havia se expandido e deveria ser combatida. Vazamentos de informações das reuniões a portas fechadas dos comitês parlamentares de defesa e segurança do Iraque demonstram o grau de coordenação entre as milícias Badr, Asaib e Kataib do Hezbollah. Representantes oficiais das Forças de Segurança Popular (PMF) e figuras acusadas de atacar e matar manifestantes e jornalistas estavam presentes. Até mesmo o comandante da Força Quds, Esmail Qaani, estava em Bagdá na véspera da tentativa de votação, um sinal claro da dimensão regional da questão. Esse esforço coincidiu com incidentes que ressaltam a gravidade da situação e sua cumplicidade: repetidos ataques à embaixada e bases americanas, ataques de drones à região do Curdistão, ameaças contra minorias não muçulmanas, tentativas de assassinato de políticos e jornalistas e iniciativas para ampliar suas redes econômicas. Como resultado, as PMF não são mais vistas como uma facção dentro do Estado, mas como uma instituição independente, semelhante à Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC) – financiada pelo Estado, mas operando independentemente dele, com Teerã no comando.
O Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional, Marco Rubio, dirigiu-se diretamente ao Primeiro-Ministro Mohammed Shia al-Sudani. Ele enfatizou que a aprovação dessas leis "consolida a influência iraniana e as milícias armadas, minando a soberania do Iraque". Ele ressaltou que essa medida mudaria a trajetória das relações bilaterais e potencialmente levaria à imposição de sanções severas, particularmente às exportações de energia. O encarregado de negócios dos EUA em Bagdá repetiu a mensagem a políticos de alto escalão, instando os blocos curdo e sunita a garantir que o quórum não seja atingido. Nos bastidores, Washington está ponderando suas opções: desde acelerar a retirada de suas tropas até divulgar informações que constrangeriam o governo iraquiano, alertar empresas americanas contra investimentos e impor sanções amplas aos braços econômicos da PMF. Apesar de toda essa pressão, as raízes da crise não podem ser abordadas de fora do Iraque. Na minha opinião, o dilema é mais profundo do que a abordagem americana, que é, em última análise, impulsionada por Interesses dos EUA, não uma visão para uma solução sustentável que alivie esta região sobrecarregada por crises. O verdadeiro problema é que nenhum Estado pode coexistir com uma milícia que se recusa a se dissolver e insiste em impor suas próprias regras. O modelo libanês mostrou como o Estado se torna refém de tal milícia. O Iêmen foi despojado de sua identidade árabe e levado ao caos e à destruição. Gaza consolidou a divisão das autoridades palestinas, tornando impossível vislumbrar um "dia seguinte", mesmo que a comunidade internacional pressione Israel a aceitar uma solução de dois Estados. A Síria corre o risco de se fragmentar. E hoje, o próprio Iraque enfrenta a ameaça de se tornar oficialmente um Estado miliciano se a lei PMF for aprovada.
Qualquer que seja a postura das grandes potências, sobretudo dos Estados Unidos, que tendem a recuar da região apenas para retornar, impulsionados por seu peso geopolítico e suas crises, o dilema da "estatização das milícias" não é um problema americano. É um desafio regional que diz respeito aos Estados da região. Esses Estados estão pagando o preço pela expansão dessas entidades e convivem com as consequências para sua segurança, economia e estabilidade. É aqui que entra a necessidade de uma visão árabe unificada entre os Estados árabes moderados. A tarefa não é meramente gerenciar os sintomas ou aceitar as milícias como um fato inevitável da vida. Essa coalizão deve rejeitar sua legitimação como entidades paralelas e insistir na necessidade de os Estados monopolizarem o uso da força. Caso contrário, não haverá soberania, e o alicerce básico da soberania permanecerá ilusório. Nesse contexto, a posição da Arábia Saudita se destaca. É a mais clara e firme: não pode haver estabilidade sem Estados que monopolizem as armas e a tomada de decisões; projetos de milícias não têm futuro, por mais que tentem se camuflar na retórica da resistência ou na narrativa sectária. O papel da Arábia Saudita, que se baseia no reforço da soberania e valoriza a estabilidade acima de tudo, agora se resume a uma estrutura realista em torno da qual Estados moderados constroem um terreno comum e se unem contra as milícias. A mensagem saudita para o mundo árabe e a comunidade internacional é clara: a região só pode ser construída por meio da soberania e do estado, e só pode crescer por meio da estabilidade.
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